Pequenas Histórias (59) - Ano 1983
O Jogo da Noite Eterna
Por uma dessas ironias da vida, eu que acompanhava atento todos os jogos do Tricolor, nas suas maiores decisões, os Mundiais de 83 e 95, estava trabalhando.
83 foi o ano do meu primeiro "grande emprego", gerente de um bar e pizzaria anexo a um hotel 4 estrelas. O point da cidade, frequentado por gente de grana e mulheres lindíssimas. O pico do movimento evidentemente era a sexta e o sábado. Eu começava às 18 h e não tinha hora para sair.
Aquele Sábado, 10 de Dezembro, marcava para a meia-noite o início do maior desafio para o meu Grêmio. Chegando ao local me deparei com o amigo Marcos, gremistão, jornalista que se tornaria deputado federal e professor. Vestia a camisa tricolor e vinha como num rito, desejar boa sorte para nós. Em 1977 fazíamos pré-vestibular e em Setembro com a conquista do campeonato regional depois de 8 anos, passamos uma semana indo as aulas com alguma coisa que lembrasse o nosso time. Ele, mais ousado, usou uma faixa de campeão gaúcho a semana toda.
O movimento começava para valer às 21, 21:30 h e o tempo custou mais a passar do que o corriqueiro. Instalei uma pequena tv de 14 polegadas no chão à esquerda, sem volume e quando dava, esticava o olho, sem descuidar do agito do ambiente com música, muita fumaça e gente na fila de espera. Hoje é impensável um hotel daquele porte ter tanto barulho quase na entrada.
- Salta uma Malt 90 e uma Brahma Chopp- gritava o garçom para Jairo, o copeiro que tinha a visão mais privilegiada do jogo, porque a "janelinha" por onde entregava as bebidas, dava de frente para a Philco, preto e branca. Enquanto isso, o Tricolor superava o nervosismo e dava às cartas com o mago Mário Sérgio fazendo "misérias" com a bola. A defesa bem postada, não dava espaços para o ataque teuto.
- Uma pizza portuguesa sem orégano para a mesa 17- Dona Anair, chefe da cozinha, trazia sempre na bolsa o autógrafo que ganhara de Émerson Leão no ano anterior. Era a pessoa mais nervosa e talvez, a mais gremista. Eu estava "fechando uma mesa", ainda assim, vi Paulo César Lima esticar uma bola para Renato que enveredou e entortou o alemão como se estivesse jogando no estádio da Montanha em Bento. Bateu entre o goleiro Stein e a trave. O arqueiro ficou petrificado (com o perdão do trocadilho; para quem não sabe Stein= Pedra). Termina o primeiro tempo e eu pensava: casa lotada, ou são colorados ou não gostam de futebol.
Numa rara folga, olho pelas paredes de vidro e vejo o apartamento de minha namoradinha, estudante de Publicidade e Propaganda, era uma república que abrigava 6 meninas. A luz estava acesa no quarto; prometera me aguardar. Recomeça a decisão.
O Grêmio volta muito melhor e vai empilhando chances. O que eu não via, o copeiro me atualizava e vice-versa. Paulo Cesar Magalhães perde gol, Tarciso perde outro, China manda uma bomba para fora. Eu pensava; tá no papo, não tem volta.
- Fecha a mesa 23. Paulinho, um Bloody Mary para a mesa 2- Paulinho era um adolescente, responsável pelos coquetéis que não ousávamos chamar de barman. Renato invade a área e é derrubado. Penalti. Juiz filho da mãe!!! Não deu.
Passa dos 40 minutos e Mazzaropi começa a aparecer. Sinal ruim. Renato desaba e sai para ser atendido. Bola da esquerda para a direita de ataque, o zagueiro Jakobs cabeceia e outro defensor, Schroeder, aparece como centro-avante, gol do Hamburgo. - Um Jolimont na mesa 18- Esse vinho deve ter sabor amargo! Lá fora, alguns foguetes são ouvidos, aqui dentro, "I'm Still Standing", profeticamente cantava Elton John na seleção musical que eu mesmo preparara para aquela noite.
Vem a prorrogação; 3 minutos, Caio levanta da esquerda, Tarciso dá uma casquinha, Renato mata com a direita, ajeita para a canhota, Schroeder desaba driblado e Stein é pego no contrapé. Goooool! O copeiro e a cozinheira sambam entre freezers e fornos. Eu erro a soma na comanda amassada. Sai um desconto para a mesa das duas morenas e da loura, esta que parece saída de um filme noir.
As pessoas vão saindo lentamente, mas ainda há meia ocupação. Termina logo, juiz! Fim de jogo. Grêmio Campeão do Mundo. Os foguetes agora são mais evidentes; o céu clareia, manchado pelo foguetório. Olho a janela do quarto, desta vez está escuro. Penso: Hora para comemorar, melhor deixá-la dormindo.
Quase 5 da manhã, um casal de adolescentes está só na Fanta uva. Já liberei quase todo mundo, tudo está devidamente abastecido para o dia seguinte. Apago as luzes do corredor de acesso e desligo o som. Ficamos eu, um garçom e uma auxiliar de cozinha para qualquer emergência.
Finalmente, a pizzaria está vazia, contabilidade fechada. Tomo uma cerveja, provo um pedaço de pizza intocado. Confiro se está tudo fechado; saio flutuando, rindo à toa. Aquela noite nunca mais saiu de mim. Difícil acreditar; 30 anos, esta noite.